10.10.2007

(75) Myo

- Um dia estava numa rede bem perto de um riacho lá de casa. O silêncio era cortado pelo fulgor de uma pequena cascata e por uma incansável cigarra que anunciava uma interminável serenata ao sol. Sempre gostei destes dias, onde o nada e sonho se envolvem em torno de uma imensa rede que nos envolve na mais pura sonolência. Porém, nesse dia, uma leve brisa que parecia nos vir refrescar trouxe com ela uma espécie de grilo, que decidiu repousar sobre o meu ventre.
Entre o sonho e a realidade, o certo é que o animal detinha uma espécie de brilho que me fascinava.
Cuidadosamente peguei na minha máquina fotográfica, a melhor amiga duma jovem perdida nos confins do leste da Austrália, e registei o momento. Quando pousava a máquina, o grilo começou a caminhar em direcção ao meu rosto, desviando-se um pouco para a esquerda e parando bem perto do meu ouvido direito. O estranho é que naquele instante tive uma clara sensação de estar louca, pois por segundos pensei que ele me ia sussurrar o maior segredo do mundo. Caí em mim e disse como toda a racionalidade demanda. – Estás louca. Fechei os olhos e senti que a cigarra já não se ouvia. Ia discretamente entrando num estado sonolento, começando todas as cores a ficarem mais baças até que a escuridão nos irrompe o cérebro. Foi naquele micro-segundo que ouvi do meu lado direito alguém a dizer. – Acorda Myo. Eles vêm aí.

E acordei. A cigarra lá estava, o riacho também. O grilo desapareceu.

E eu ali fiquei de novo sozinha numa imensidão de verde.

Nisto, Myo faz uma pausa e dirige-se para a cozinha. Abre o armário e tira um copo. Pergunta-me se tenho água no frigorífico, ao que eu respondo que não.

Abre a torneira e enche o copo até cima. Começa a beber na cozinha. Eu, intrigado com o que vinha a seguir na história, como quem espera desalmadamente pelo final de uns “Suspeitos do Costume”, gritei bem alto.

- Bebe aqui e vai contando a história.

Ela assentiu e pegando no copo cheio até ao topo voltou-se a enterrar no sofá laranja.
Antes de prosseguir com a história retirou um cigarro da sua mala e acendeu-o.
Finalmente continuou.

- Como te disse, ali fiquei deitada umas boas horas a magicar que voz seria aquela que me disse para acordar. Foi então que os meus pensamentos foram cortados pelos gritos intensos que se ouviam no cimo do vale, como se o mundo estivesse a acabar. E de certa maneira estava. Corri desalmadamente a ver se encontrava a minha mãe. Subi à vila e do topo do monte, onde normalmente apenas estão casais de namorados, vi a escuridão mais negra da minha vida. Com ela vinha um zumbido infernal e um arrepio que não deixava antever nada de bom. O meu primeiro instinto, automaticamente, foi pegar na máquina fotográfica e registar a visita das trevas. Contudo, quando peguei no aparelho verifiquei que o cartão de memória estava cheio. Num ápice comecei logo a planear apagar fotos, mas num segundo todo aquele desejo de registar o momento esvaiu-se como se nunca tivesse existido. A primeira foto que me apareceu no visor para eu apagar era a do grilo que me tinha dito para acordar.

Foi neste momento que senti um arrepio na espinha. Convenhamos. Eu não sou nada amigo do paranormal, mas um grilo que fala é algo que só nesses termos pode existir. Porém ele estava documentado e Myo até me deu uma impressão da foto do bicho. Ao olhar apercebi-me que não era um grilo, mas uma orthoptera.

Myo, parecendo que me lia os pensamentos continuou com a sua história.

- Só anos mais tarde, e quando namorava com um biólogo, descobri que não era um grilo que tinha visto.
- Era uma orthoptera, disse eu.

- Exacto. Eu nessas coisas sou muito leiga e até então não distinguia os grilos das othopteras e dos gafanhotos. O certo é que fiquei com essa alcunha lá na pequena localidade Australiana. Depois da praga de gafanhotos ter dizimado as colheitas, eu referi a história ao meu pai, que desde então me passou a chamar isso. Obviamente que o boato se espalhou e de repente a Myo, que não passava de uma miúda que ninguém reparava, passou a ser a orthoptera – a Vidente. Inicialmente não gostei do tom com que brincavam comigo, mas aos poucos fui percebendo que era apenas uma forma condescendente de tratarem uma miúda. Tenho a certeza que se hoje fosse a essa terrinha, muitos iam me reconhecer como a pequena Orthoptera.