10.18.2007

(315) Plåga

Imaginem as trevas na sua forma bruta. Imaginem as trevas a corroerem todo o vosso corpo e alma. Imaginem que não existe mais nada no mundo a não ser um gritante silêncio doentio que vos retira todas as forças. Imaginem que tudo aquilo, tudo o que mais queriam desaparece perante os vossos olhos, sem hipótese de retorno.

Imaginem a dor. O fim dos fins. A escuridão total que irrompe por todos os meus sentidos.

- Mostra-me o amor, diz Sun Li...

E eu mostrei o que conhecia...

10.12.2007

(3) Furstinna

Há muitos, muitos anos, estava um camponês muito triste a olhar para as suas terras. A chuva não era sua amiga, a terra parecia estar de luto e o fogo ajudou-o no desespero. Os animais morreram e só sobrava uma velha burra que apenas servia como mais uma boca para alimentar.
Sobre o solo caiam as lágrimas do pobre camponês, que ainda por cima tinha a esposa confinada a uma cama e sem o poder ajudar.

Sentado sobre uma pedra junto da levada, o homem pensava na sua vida miserável que parecia nunca mudar. Dali via-se a campa dos seus país e das suas filhas mais novas, vítimas da velhice e de infantis acidentes de trabalho.

Desesperado, o homem já não sabia o que fazer, e com o último saco de sementes que possuía, plantou num canteiro a sua última réstia de esperança.

É então que no meio daquele fim do mundo, o homem ouve alguém a caminhar na sua direcção. Assustado, e paranóico, o homem pega na sua enxada e alerta com tom ameaçador:

- Quem quer que seja desapareça. Aqui não há nada.

A este grito desesperante respondeu uma voz feminina, agastada e trémula como se tivesse escapado ao purgatório:

- Não me faças mal. Só preciso descansar um pouco para continuar a minha viagem.

Desconfiado, o camponês – sempre de enxada na mão e com tom ameaçador, deixou a mulher aproximar-se, mantendo sempre uma distância de segurança.

A jovem, muito morena e de tez negra, sentou-se perto da levada e bebeu toda a água que o mundo lhe parecia querer dar. E nem se importou que esta estivesse com cinza, um reflexo do incêndio que naquelas terras tinha lavrado.

Durante minutos o camponês nada disse e apenas olhava a mulher como se de um bicho estranho se tratasse. Perceba-se porém que onde ele vivia apenas existia a sua mulher. Para dizer a verdade, fazia três anos que ele não via ninguém, e cada vez que por lá apareciam pessoas, era normalmente para lhe cobrar qualquer coisa.

A jovem, já menos ofegante, decide então tomar banho na levada, deixando o pobre camponês envergonhado.

- Era preciso eu despir-me para tirares os olhos de mim?, perguntou ela.

A menina que me desculpe a franqueza, mas as coisas não têm corrido bem e como tal não tenho paciência para sequer gastar as minhas últimas forças a falar. Como tal, pedia que depois de se banhar desapareça das minhas terras, pois eu tenho mais que fazer.

Ela assentiu com a cabeça e esboçou um pequeno sorriso, como que entendendo que toda a vida daquele homem fora de sofrimento e que o que ele mais queria naquele instante era ficar sozinho, como sempre.

- Percebo e acato a sua decisão caso faça mesmo questão, mas pedia-lhe encarecidamente para me deixar dormir nas suas terras esta noite. Caminho há 12 dias e mal tenho pregado o olho. Se possível, gostava que me fizesse esse favor. E não se incomode com nada, apenas lhe peço para me deixar dormir sob um telhado, que até pode ser a de um barracão, ou pocilga.

O homem, apesar de continuar a fazer uma cara de poucos amigos, tinha um coração de ouro e não podia deixar uma jovem partir naquelas condições quando o que ela lhe tinha pedido era tão fácil de ele lhe dar. Por outro lado, o facto de ter um tecto onde dormir fez o homem pensar que afinal de contas a sua vida não era tão desgraçada como à partida se poderia pensar.

Lembrando-se dos tempos de jovem, em que pernoitava em diversas quintas de maneira a ir para a ceifa a 300 km de casa, o homem não teve coragem de a mandar embora.

- Pode ficar naquele palheiro durante uma noite. Mas tenha atenção que vai partilhar aquele espaço com a minha burra. Ela é velha, cheira mal e as moscas não a largam, por isso terá também esse problema. Mas se é o que deseja, então não me oponho.

A jovem com um ligeiro sorriso agradeceu o gesto do camponês e como forma de pagamento decidiu dar-lhe um saquinho de sementes de feijão que transportava consigo.

O homem agradeceu a oferenda e conduziu-a ao palheiro. Este era um espaço estranhamente asseado, muito mais do que o homem tinha deixado antever. De um lado existiam fardos de palha, algumas ferramentas agrícolas e uma velha pedra de amolador. Do outro, e amarrada a um poste, estava a velha burra, já cega de um olho. O espaço tinha ainda uma espécie de primeiro andar que apenas cobria o local onde a burra se encontrava. Era aqui que o camponês habitualmente acumulava os viveres, estando este espaço entretanto praticamente vazio. Umas 12 batatas, umas cebolas e uma caixa com alguma carne salgada são o que restava.
A jovem deitou-se sobre a palha e adormeceu instantaneamente.

O homem ainda ficou uns longos minutos a olhar para ela, dirigindo-se depois a casa. Aí, e depois de tratar da sua esposa acamada, ele pegou num cacete e numa chouriça que tinha e dividiu em três. Envolveu um pedaço de pão e do enchido numa toalha e colocou de lado. Depois foi ao armário da cozinha e retirou de lá um velho cantil em forma de cabaça. Enquanto o enchia de água lembrou-se dos seus tempos de jovem e como aquele cantil o tinha ajudado a chegar até ali.
Já com o cantil cheio e a toalha embrulhada com comida, o homem voltou ao palheiro, colocando ao lado da jovem o que ele poderia oferecer.

A jovem continuava ferrada no seu sono e nem se ouvia a sua respiração.

O camponês abandonou o local e dirigiu-se à cama. Aí contou à mulher que estava uma jovem a dormir no palheiro, sabendo que nunca iria ter resposta desta. A sua esposa era catatónica e há pelo menos 12 anos que ele não via nela qualquer tipo vida exterior.

Com a lamparina ligada, o camponês ficou a ver se ganhava sono olhando para uma extensa teia de aranha que cobria a janela do quarto. Ao fundo a lua estava cheia e o camponês perdeu-se nos seus vales enquanto pensava como seria bom caminhar nela.

A próxima imagem que ele se lembra de ver foi a do sol a raiar. Nesse dia o camponês deixou-se estar mais algum tempo deitado, afinal o cheiro a terra queimada lembrou-o que não havia hortas para tratar, nem animais para alimentar.

Envolvido num segundo sono, o camponês sonhou com o mar e como era bom mergulhar nele. Só aqui ele sabia o que era mergulhar no mar, pois nunca na sua vida ele tinha visto semelhante coisa. Aliás, a única imagem que ele tem do mar está estampada numa tela do seu quarto. Nela um grupo de pescadores empurra um barco para dentro mar.

- Ai como eu gostava, disse ele acordando sobressaltado. O sol já não batia directamente pela janela e como tal já deveria ser bem tarde.

Levantou-se, lavou a cara, vestiu-se e tratou da sua esposa, como o faz há anos. Estranhamente o camponês reparou que a sua mulher detinha uma espécie de sorriso. Ele ainda tentou falar com ela, mas não teve resposta. Apenas aquele ligeiro e quase imperceptível sorriso.

De seguida comeu o que restava do cacete com a chouriça e aqueceu um púcaro de água. Aproveitou as borras do café do dia anterior e serviu-se, nunca esquecendo o sorriso com que a sua esposa hoje o presenteara. Em doze anos nunca tinha visto aquela expressão estampada na cara dela, e aquilo não lhe saía da cabeça. Continuou a beber o café enquanto se dirigia ao palheiro para saber se a jovem gostaria de provar aquela ementa.

Quando lá chegou ela não estava e no seu lugar apenas restava o saquinho com sementes de feijão que ele se tinha esquecido de levar no dia anterior. A burra também tinha desaparecido, tal como as ferramentas agrícolas.
Desgostoso o homem pensou que tinha sido mais uma vez enganado e seguiu o caminho em direcção à levada. Nada. Com a mesma rapidez com que a jovem chegou, ela também partiu e até levou a sua burra.
Voltou para casa de olhos assentes no chão, mas aquele roubo não lhe soube particularmente mal. A sua mulher estava com um ligeiro sorriso e só isso valia todas as desgraças anteriores.

Enquanto caminhava ele reparou que no sítio onde ontem tinha derramado as últimas lágrimas que parecia ter no seu corpo agora o solo estava descoberto de cinzas e parecia ser fértil. Nele estavam espalhadas as ferramentas que tinha no palheiro. A burra também lá estava, já com um arado nas costas e com a vista descoberta.

Abismado com tudo o homem pegou no saquinho de sementes. Nele não encontrou o que pensava. Em vez disso, o encardido saco estava cheio de um material dourado metálico. Era ouro.
Apesar de nunca ter mexido em ouro ele sabia bem o que este era. Afinal de contas, o homem na sua juventude tinha ido trabalhar para a ceifa para um grande proprietário que carregava nos dedos diversas marcas de riqueza.

Espantado, suando por todos os poros do corpo e instantaneamente cego, surdo e mudo, o homem deixou cair o ouro no chão. Quando recuperou a visão ele reparou que o saco continuava cheio, mesmo depois de o ter despejado no chão. Abaixou-se e apanhou todas as moedas que pode, reparando que no chão e à sua frente, algo agora lhe fazia sombra. Sem nunca lhe colocar a vista em cima o homem agradeceu a dádiva, pensando tratar-se da jovem que ele tinha ajudado no dia anterior. Porém, e no mais estranho dos cenários, a única coisa que ele ouviu foi:

- Olá marido. Estou de volta...

10.11.2007

(2) Sten

Estávamos nas montanhas. A escuridão era nossa aliada. À minha frente caminham onze almas moribundas, duas delas com apenas 8 anos. O silêncio protege-nos, mas também evidencia qualquer som que involuntariamente façamos.

O cheiro a terra molhada entope-me os sentidos e enregela-me os pés, já de si tatuados pela intensa caminhada que fazemos há 18 dias. As minhas mãos continuam a perder pele. As unhas estão partidas e encardidas. As costas dobram-se cada vez mais devido ao fardo que carrego. A minha roupa está rasgada, molhada e suja. No ombro direito a queimadura que me infligiram há uma semana resiste a cicatrizar.

A minha vista direita continua a derramar lágrimas involuntárias, reflexo claro do esforço que tenho aplicado nela, de maneira a estar sempre em alerta. A extensa barba vai acolhendo bocados de lama, lágrimas e vegetação. Há ainda uns ligeiros cortes por todo o corpo das silvas que se vão prendendo ao corpo pelo caminho.

Estou claramente mal nutrido e as marcas dos ossos do tronco cada vez ganham maiores contornos.

Tudo o que possuímos é embalado e carregado numa pesada mochila. Não arriscamos em comer nada pelo caminho, nem a mais deliciosa das maçãs que parece nem imaginar o que aconteceu ao mundo.

O céu negro continua a expelir cinza. Está frio, muito frio e há horas que não vemos vivalma. Nem um coelho, ou um rato. Nem um insecto, nem um pardal.

Sento-me sobre uma pedra, o único elemento que parece não me poder trair naquele instante. Caio que nem um pardal quando pousa num pequeno galho numa zona de caça. O silêncio é interrompido por uma enorme gargalhada de grupo. Há dias que não ouvia tal som. Já nem me lembrava de como era, tal o ambiente mórbido que nos perseguia.

A pedra, mal me sentei, enterrou-se na lama. Eu, apanhado desprevenido, caí de costas. E foi aí que a vi...

10.10.2007

(75) Myo

- Um dia estava numa rede bem perto de um riacho lá de casa. O silêncio era cortado pelo fulgor de uma pequena cascata e por uma incansável cigarra que anunciava uma interminável serenata ao sol. Sempre gostei destes dias, onde o nada e sonho se envolvem em torno de uma imensa rede que nos envolve na mais pura sonolência. Porém, nesse dia, uma leve brisa que parecia nos vir refrescar trouxe com ela uma espécie de grilo, que decidiu repousar sobre o meu ventre.
Entre o sonho e a realidade, o certo é que o animal detinha uma espécie de brilho que me fascinava.
Cuidadosamente peguei na minha máquina fotográfica, a melhor amiga duma jovem perdida nos confins do leste da Austrália, e registei o momento. Quando pousava a máquina, o grilo começou a caminhar em direcção ao meu rosto, desviando-se um pouco para a esquerda e parando bem perto do meu ouvido direito. O estranho é que naquele instante tive uma clara sensação de estar louca, pois por segundos pensei que ele me ia sussurrar o maior segredo do mundo. Caí em mim e disse como toda a racionalidade demanda. – Estás louca. Fechei os olhos e senti que a cigarra já não se ouvia. Ia discretamente entrando num estado sonolento, começando todas as cores a ficarem mais baças até que a escuridão nos irrompe o cérebro. Foi naquele micro-segundo que ouvi do meu lado direito alguém a dizer. – Acorda Myo. Eles vêm aí.

E acordei. A cigarra lá estava, o riacho também. O grilo desapareceu.

E eu ali fiquei de novo sozinha numa imensidão de verde.

Nisto, Myo faz uma pausa e dirige-se para a cozinha. Abre o armário e tira um copo. Pergunta-me se tenho água no frigorífico, ao que eu respondo que não.

Abre a torneira e enche o copo até cima. Começa a beber na cozinha. Eu, intrigado com o que vinha a seguir na história, como quem espera desalmadamente pelo final de uns “Suspeitos do Costume”, gritei bem alto.

- Bebe aqui e vai contando a história.

Ela assentiu e pegando no copo cheio até ao topo voltou-se a enterrar no sofá laranja.
Antes de prosseguir com a história retirou um cigarro da sua mala e acendeu-o.
Finalmente continuou.

- Como te disse, ali fiquei deitada umas boas horas a magicar que voz seria aquela que me disse para acordar. Foi então que os meus pensamentos foram cortados pelos gritos intensos que se ouviam no cimo do vale, como se o mundo estivesse a acabar. E de certa maneira estava. Corri desalmadamente a ver se encontrava a minha mãe. Subi à vila e do topo do monte, onde normalmente apenas estão casais de namorados, vi a escuridão mais negra da minha vida. Com ela vinha um zumbido infernal e um arrepio que não deixava antever nada de bom. O meu primeiro instinto, automaticamente, foi pegar na máquina fotográfica e registar a visita das trevas. Contudo, quando peguei no aparelho verifiquei que o cartão de memória estava cheio. Num ápice comecei logo a planear apagar fotos, mas num segundo todo aquele desejo de registar o momento esvaiu-se como se nunca tivesse existido. A primeira foto que me apareceu no visor para eu apagar era a do grilo que me tinha dito para acordar.

Foi neste momento que senti um arrepio na espinha. Convenhamos. Eu não sou nada amigo do paranormal, mas um grilo que fala é algo que só nesses termos pode existir. Porém ele estava documentado e Myo até me deu uma impressão da foto do bicho. Ao olhar apercebi-me que não era um grilo, mas uma orthoptera.

Myo, parecendo que me lia os pensamentos continuou com a sua história.

- Só anos mais tarde, e quando namorava com um biólogo, descobri que não era um grilo que tinha visto.
- Era uma orthoptera, disse eu.

- Exacto. Eu nessas coisas sou muito leiga e até então não distinguia os grilos das othopteras e dos gafanhotos. O certo é que fiquei com essa alcunha lá na pequena localidade Australiana. Depois da praga de gafanhotos ter dizimado as colheitas, eu referi a história ao meu pai, que desde então me passou a chamar isso. Obviamente que o boato se espalhou e de repente a Myo, que não passava de uma miúda que ninguém reparava, passou a ser a orthoptera – a Vidente. Inicialmente não gostei do tom com que brincavam comigo, mas aos poucos fui percebendo que era apenas uma forma condescendente de tratarem uma miúda. Tenho a certeza que se hoje fosse a essa terrinha, muitos iam me reconhecer como a pequena Orthoptera.

(317) Sun Li

Uma pequena lágrima percorreu a face de Sun Li acabando por aterrar sobre o parco verde que ainda preenche este pedaço de chão na sua maioria cinza.

- Agora sim posso morrer, disse ela com o ar de quem não tinha mais força para viver.
- Luta!! Ainda vais viver um momento assim. Tens de acreditar – gritava eu com ela nos meus braços.

Como que num último suspiro, Sun Li olhou-me e disse:

- Finalmente conheci o amor. Acredito. Nunca desistas de a procurar.

Veio então o pior dos silêncios e na minha face uma torrente de lágrimas estava decidida a fazer companhia a Sun Li naquele pedaço de terra.

E ali ficaram para sempre.

(316) A Sombra do Amor

Eram 7 da manhã quando cheguei a casa. As olheiras fugiam do rasgo de luz que penetrava na cozinha, cegando-me exaustivamente e reflectindo no chão uma sombra feminina. Em cima da mesa quadrada da cozinha estava deitada Myo.

O ainda curto sol reluzia-lhe a pele. Estava calor, mas não muito. Apenas o suficiente para criar uma pequena bolsa de transpiração sobre o seu braço desnudado e sobre o qual caía a alça do seu soutien.

Eu gosto de soutiens brancos. São límpidos e não trazem mensagens ou obrigações e desejos atrás. Vibram quando o sol lhes bate em cima.

Uma gota de suor descia para o imenso vale do seu antebraço. Antes de chegar à mão travei-a com o meu dedo indicador. Provei-a.

Eu não sou um expert nestas coisas, longe disso, mas esta gota de suor sabia a tudo o que a nossa relação representava. Era salgada, quente e acima de tudo distinguia-se de todos os outros sabores que me percorriam a língua naquele instante.

Tentei acordá-la.

- Myo!

Ela não diz nada. Mantém-se imóvel e muito quieta. A segunda tentativa levou-a a mexer um pouco as ancas e a subir ainda mais a saia já de si curta. Não tinha collants e um dos seus sapatos já estava caído no chão.

Aproximei-me e na sua perfeita orelha deixei-lhe a primeira marca das 7 da manha.

Nisto, ela esboça um sorriso enquanto dorme. Os mais belos sorrisos são aqueles quando dormimos. É das poucas alturas em que somos verdadeiramente genuínos. Não existem regras de etiqueta. O resmungar representa exactamente aquilo que sentimos. O sorriso também. Era genuinamente feliz, reconfortante, como se estivesse ali à minha espera desde sempre, e eu destinado a cair nos seus alvos braços.

Soltei mais um pedido para acordar e finalmente ela abriu um dos seus rasgados olhos castanhos em minha direcção. O olhar que me lançou foi tão doce e perfeito que as minhas pernas tremeram.

Desviei um vaso de tulipas, que decora esta mesa branca, numa cozinha branca, com panos brancos e sentei-me a seu lado.

Instintivamente, e sem uma única palavra, ela virou-se para mim - descaindo a cabeça contra as minhas pernas e deixando o seu longo cabelo negro ficar marcado pelo sol sobre o azulejo da mesa.

A imagem era perfeita. A sensação ainda melhor. A alça do seu soutien estava cada vez mais baixa e o fio que trazia o pescoço afundou-se por dentro da camisa.

Comecei a percorrer o seu cabelo com os meus dedos finos, pulsando cada vez que lhe tocava na pele do seu fino pescoço. Parei numa das suas marcas, e cerquei-a com o toque em torno daquele sinal que as suas orelhas escondem. Não há nada mais excitante e estimulante que conhecer estas pequenas marcas repletas de unicidade de olhos fechados.

Podemos ter toda a intimidade do mundo com alguém, mas conhecer mentalmente os locais exactos destes traços de uma pessoa são os indicadores perfeitos do grau de intimidade de uma relação.

- Pára – disse ela dando uma ligeira risada que despertava os seus lábios e dentes perfeitos. – Estás-me a fazer cócegas – afiançou, num jeito de quem queria interagir e desejava muito mais que um simples toque.

Naquele instante, em que os seus lábios se moveram e os dentes se soltaram, o meu peito parecia um tornado de emoções, de tão pesado e agitado que estava. Decidi tomar outro rumo.

O sol agora já a preenchia completamente e até olhando apenas para os contornos da sombra sobre aquela mesa me levavam a suspirar.

Percorria agora a sua face com os meus dedos, ajeitando o cabelo que teimava em tapar a sua orelha direita. Cheguei-me um pouco para o lado e fiquei a olhar para ela como se este fosse o último olhar, no último minuto da minha vida.

Beijei-lhe as imperfeitas sobrancelhas e o sinal que tinha junto à vista esquerda. Ela abriu os olhos e começou a subir a sua face. Não tirava a vista dos meus lábios húmidos e trémulos tal o desenfreado volume de emoções que me assaltavam os sentidos. A minha mão agora cobria a sua nuca. O meu polegar aconchegava a sua orelha. O suor já começava a escorrer no meu peito.

Lentamente ela começa a colocar a sua mão no meu estômago e de forma circular começa a espalhar as pequenas gostas húmidas do meu peito por todo o meu tronco.

De uma vez só voltámos a estar sentados, enquanto nos beijávamos delicadamente. O sol batia-nos agora nas costas, formando na mesa, entre os espaços que deixávamos abertos, uma sombra que parecia ser a de um único corpo. É engraçado, mas as sombras são um pouco como aquela nossa visão infantil sobre as formas das nuvens. Vemos nelas o que queremos ver, pois estamos afectados em termos de sentidos por uma força no peito que quase não deixa respirar.

Desci-lhe a outra alça e comecei a beijar-lhe o ombro direito, enquanto ela se perdia no meu pescoço. Todos os pêlos do meu corpo arrepiaram-se como se a morte tivesse passado por mim mesmo ali e agora. Mas estou vivo como nunca.

Deitei-a sobre a mesa e comecei a retirar-lhe a minúscula saia aos quadrados vermelhos e negros. Lentamente, pausadamente, como se o mundo tivesse parado e não existisse qualquer contorno temporal.

Em retorno, ela decide puxar a minha t-shirt, deixando-a propositadamente presa no meu pescoço, apenas e só para que aquele momento durasse mais.

Já sobre ela começo a abrir-lhe a camisa branca. Botão a botão cada vez a desejo mais. Os corpos juntam-se e agora já partilhamos o suor. Barriga com barriga, peito com peito, face com face, mão direita com mão direita.

Estando assim, colados, ela começa a desapertar o meu cinto verde e amarelo com o qual já tinha interagido quando me puxou contra si.

Começo a deslizar sobre si, deixando o toque da minha língua por toda a sua figura. Enquanto me movo, vou cuidadosamente baixando as suas cuecas brancas rendadas nas pontas que me deixam ainda mais louco. Quando estas chegam à parte mais baixa das suas pernas deixo-as ficar num equilíbrio fantástico entre os seus tornozelos.

Após alguns momentos ela puxa-me para cima, beijando-me violentamente os meus lábios, cada vez mais húmidos e ainda com resquícios de algo que era dela e que agora era nosso.

Continuamos assim largos minutos, beijando-nos exaustivamente como se fossemos dois mergulhadores que necessitam de oxigénio para estar debaixo de água. A pressão dos nossos corpos era infinita e só balançou quando ela começou a gemer tão agudamente e tão volumosamente que por momentos pensei que não existia maior felicidade que aquela.

Nas minhas costas ela foi deixando marcas daquele dia, daquele momento, que era tão perfeito que não queria que nunca acabasse.
Mas faltava uma coisa para que o momento fosse perfeito e ela insistiu que esse último destino fosse dentro dela.

E assim foi. Desprendi tudo o que sentia e deixei que ela o guardasse, sendo perfeitamente audível e memorável o último som de puro prazer durante esta última hora.

Desfaleci sobre o seu peito. Ela, de olhos fechados e respiração ofegante, continuou a acariciar-me, escolhendo agora o meu cabelo como o seu último poiso.

Após uns minutos beijei-a e ela permaneceu de olhos fechados, comprimindo agora o meu ombro direito que soltava um braço sobre o seu ainda trémulo corpo.

Os meus olhos agora já só viam o seu mamilo e o sol que entretanto já estava mais alto e intenso.

Ao longe, os edifícios por natureza aberrantes repletos de neons estavam mais belos que nunca. O céu parecia que os sustinha como que por artes mágicas, como se no fundo eles não tivessem agarrados ao solo, mas sim suspensos num equilíbrio perfeito com o azul que os cercava.

Em que pensas, diz ela. Em nada. Absolutamente nada, digo eu.

E era verdade. Parecia que tinha o meu corpo e mente tão preenchido com Myo que naquele momento nada mais se podia intrometer.

Foi então que ela, enquanto cuidadosamente afastava as suas mãos do meu corpo, disse algo que eu não estava mesmo à espera.

Estou grávida.

A minha resposta foi tão curta que, se alguém com as aspirações a ser um escritor - como eu, a dissesse, eu diria que não teria futuro nessa profissão.

Seria de esperar que alguém como eu tivesse mil e uma palavras para dizer naquele instante preciso, mas só uma conseguiu escapar.

- Amo-te

Esta palavra resumia todas as outras.