(3) Furstinna
Há muitos, muitos anos, estava um camponês muito triste a olhar para as suas terras. A chuva não era sua amiga, a terra parecia estar de luto e o fogo ajudou-o no desespero. Os animais morreram e só sobrava uma velha burra que apenas servia como mais uma boca para alimentar.
Sobre o solo caiam as lágrimas do pobre camponês, que ainda por cima tinha a esposa confinada a uma cama e sem o poder ajudar.
Sobre o solo caiam as lágrimas do pobre camponês, que ainda por cima tinha a esposa confinada a uma cama e sem o poder ajudar.
Sentado sobre uma pedra junto da levada, o homem pensava na sua vida miserável que parecia nunca mudar. Dali via-se a campa dos seus país e das suas filhas mais novas, vítimas da velhice e de infantis acidentes de trabalho.
Desesperado, o homem já não sabia o que fazer, e com o último saco de sementes que possuía, plantou num canteiro a sua última réstia de esperança.
É então que no meio daquele fim do mundo, o homem ouve alguém a caminhar na sua direcção. Assustado, e paranóico, o homem pega na sua enxada e alerta com tom ameaçador:
- Quem quer que seja desapareça. Aqui não há nada.
A este grito desesperante respondeu uma voz feminina, agastada e trémula como se tivesse escapado ao purgatório:
- Não me faças mal. Só preciso descansar um pouco para continuar a minha viagem.
Desconfiado, o camponês – sempre de enxada na mão e com tom ameaçador, deixou a mulher aproximar-se, mantendo sempre uma distância de segurança.
A jovem, muito morena e de tez negra, sentou-se perto da levada e bebeu toda a água que o mundo lhe parecia querer dar. E nem se importou que esta estivesse com cinza, um reflexo do incêndio que naquelas terras tinha lavrado.
Durante minutos o camponês nada disse e apenas olhava a mulher como se de um bicho estranho se tratasse. Perceba-se porém que onde ele vivia apenas existia a sua mulher. Para dizer a verdade, fazia três anos que ele não via ninguém, e cada vez que por lá apareciam pessoas, era normalmente para lhe cobrar qualquer coisa.
A jovem, já menos ofegante, decide então tomar banho na levada, deixando o pobre camponês envergonhado.
- Era preciso eu despir-me para tirares os olhos de mim?, perguntou ela.
A menina que me desculpe a franqueza, mas as coisas não têm corrido bem e como tal não tenho paciência para sequer gastar as minhas últimas forças a falar. Como tal, pedia que depois de se banhar desapareça das minhas terras, pois eu tenho mais que fazer.
Ela assentiu com a cabeça e esboçou um pequeno sorriso, como que entendendo que toda a vida daquele homem fora de sofrimento e que o que ele mais queria naquele instante era ficar sozinho, como sempre.
- Percebo e acato a sua decisão caso faça mesmo questão, mas pedia-lhe encarecidamente para me deixar dormir nas suas terras esta noite. Caminho há 12 dias e mal tenho pregado o olho. Se possível, gostava que me fizesse esse favor. E não se incomode com nada, apenas lhe peço para me deixar dormir sob um telhado, que até pode ser a de um barracão, ou pocilga.
O homem, apesar de continuar a fazer uma cara de poucos amigos, tinha um coração de ouro e não podia deixar uma jovem partir naquelas condições quando o que ela lhe tinha pedido era tão fácil de ele lhe dar. Por outro lado, o facto de ter um tecto onde dormir fez o homem pensar que afinal de contas a sua vida não era tão desgraçada como à partida se poderia pensar.
Lembrando-se dos tempos de jovem, em que pernoitava em diversas quintas de maneira a ir para a ceifa a 300 km de casa, o homem não teve coragem de a mandar embora.
- Pode ficar naquele palheiro durante uma noite. Mas tenha atenção que vai partilhar aquele espaço com a minha burra. Ela é velha, cheira mal e as moscas não a largam, por isso terá também esse problema. Mas se é o que deseja, então não me oponho.
A jovem com um ligeiro sorriso agradeceu o gesto do camponês e como forma de pagamento decidiu dar-lhe um saquinho de sementes de feijão que transportava consigo.
O homem agradeceu a oferenda e conduziu-a ao palheiro. Este era um espaço estranhamente asseado, muito mais do que o homem tinha deixado antever. De um lado existiam fardos de palha, algumas ferramentas agrícolas e uma velha pedra de amolador. Do outro, e amarrada a um poste, estava a velha burra, já cega de um olho. O espaço tinha ainda uma espécie de primeiro andar que apenas cobria o local onde a burra se encontrava. Era aqui que o camponês habitualmente acumulava os viveres, estando este espaço entretanto praticamente vazio. Umas 12 batatas, umas cebolas e uma caixa com alguma carne salgada são o que restava.
A jovem deitou-se sobre a palha e adormeceu instantaneamente.
O homem ainda ficou uns longos minutos a olhar para ela, dirigindo-se depois a casa. Aí, e depois de tratar da sua esposa acamada, ele pegou num cacete e numa chouriça que tinha e dividiu em três. Envolveu um pedaço de pão e do enchido numa toalha e colocou de lado. Depois foi ao armário da cozinha e retirou de lá um velho cantil em forma de cabaça. Enquanto o enchia de água lembrou-se dos seus tempos de jovem e como aquele cantil o tinha ajudado a chegar até ali.
Já com o cantil cheio e a toalha embrulhada com comida, o homem voltou ao palheiro, colocando ao lado da jovem o que ele poderia oferecer.
A jovem continuava ferrada no seu sono e nem se ouvia a sua respiração.
O camponês abandonou o local e dirigiu-se à cama. Aí contou à mulher que estava uma jovem a dormir no palheiro, sabendo que nunca iria ter resposta desta. A sua esposa era catatónica e há pelo menos 12 anos que ele não via nela qualquer tipo vida exterior.
Com a lamparina ligada, o camponês ficou a ver se ganhava sono olhando para uma extensa teia de aranha que cobria a janela do quarto. Ao fundo a lua estava cheia e o camponês perdeu-se nos seus vales enquanto pensava como seria bom caminhar nela.
A próxima imagem que ele se lembra de ver foi a do sol a raiar. Nesse dia o camponês deixou-se estar mais algum tempo deitado, afinal o cheiro a terra queimada lembrou-o que não havia hortas para tratar, nem animais para alimentar.
Envolvido num segundo sono, o camponês sonhou com o mar e como era bom mergulhar nele. Só aqui ele sabia o que era mergulhar no mar, pois nunca na sua vida ele tinha visto semelhante coisa. Aliás, a única imagem que ele tem do mar está estampada numa tela do seu quarto. Nela um grupo de pescadores empurra um barco para dentro mar.
- Ai como eu gostava, disse ele acordando sobressaltado. O sol já não batia directamente pela janela e como tal já deveria ser bem tarde.
Levantou-se, lavou a cara, vestiu-se e tratou da sua esposa, como o faz há anos. Estranhamente o camponês reparou que a sua mulher detinha uma espécie de sorriso. Ele ainda tentou falar com ela, mas não teve resposta. Apenas aquele ligeiro e quase imperceptível sorriso.
De seguida comeu o que restava do cacete com a chouriça e aqueceu um púcaro de água. Aproveitou as borras do café do dia anterior e serviu-se, nunca esquecendo o sorriso com que a sua esposa hoje o presenteara. Em doze anos nunca tinha visto aquela expressão estampada na cara dela, e aquilo não lhe saía da cabeça. Continuou a beber o café enquanto se dirigia ao palheiro para saber se a jovem gostaria de provar aquela ementa.
Quando lá chegou ela não estava e no seu lugar apenas restava o saquinho com sementes de feijão que ele se tinha esquecido de levar no dia anterior. A burra também tinha desaparecido, tal como as ferramentas agrícolas.
Desgostoso o homem pensou que tinha sido mais uma vez enganado e seguiu o caminho em direcção à levada. Nada. Com a mesma rapidez com que a jovem chegou, ela também partiu e até levou a sua burra.
Voltou para casa de olhos assentes no chão, mas aquele roubo não lhe soube particularmente mal. A sua mulher estava com um ligeiro sorriso e só isso valia todas as desgraças anteriores.
Enquanto caminhava ele reparou que no sítio onde ontem tinha derramado as últimas lágrimas que parecia ter no seu corpo agora o solo estava descoberto de cinzas e parecia ser fértil. Nele estavam espalhadas as ferramentas que tinha no palheiro. A burra também lá estava, já com um arado nas costas e com a vista descoberta.
Abismado com tudo o homem pegou no saquinho de sementes. Nele não encontrou o que pensava. Em vez disso, o encardido saco estava cheio de um material dourado metálico. Era ouro.
Apesar de nunca ter mexido em ouro ele sabia bem o que este era. Afinal de contas, o homem na sua juventude tinha ido trabalhar para a ceifa para um grande proprietário que carregava nos dedos diversas marcas de riqueza.
Espantado, suando por todos os poros do corpo e instantaneamente cego, surdo e mudo, o homem deixou cair o ouro no chão. Quando recuperou a visão ele reparou que o saco continuava cheio, mesmo depois de o ter despejado no chão. Abaixou-se e apanhou todas as moedas que pode, reparando que no chão e à sua frente, algo agora lhe fazia sombra. Sem nunca lhe colocar a vista em cima o homem agradeceu a dádiva, pensando tratar-se da jovem que ele tinha ajudado no dia anterior. Porém, e no mais estranho dos cenários, a única coisa que ele ouviu foi:
- Olá marido. Estou de volta...
<< Home